Margareth Dalcolmo: “O isolamento social severo e o SUS são as grandes armas do Brasil contra a pandemia”

Pneumologista da Fiocruz afirma que o coronavírus atingirá populações mais jovens no Brasil, reforça a necessidade de distanciamento social antes do pico da doença e faz alerta para proteger favelas

A médica pneumologista Margareth Dalcolmo, da Fiocruz.
A médica pneumologista Margareth Dalcolmo, da Fiocruz.

A médica Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e uma das pneumologistas mais experientes do Brasil, atua desde o início da crise do coronavírus na linha de frente do combate à doença no Brasil. Atende a pacientes com a Covid-19 e participa do grupo de especialistas consultados pelo Ministério da Saúde para coordenar medidas para o enfrentamento da pandemia. Se num primeiro momento as autoridades de saúde chegaram a apostar que, no Brasil, a doença entraria com menos força por conta do clima e de suas características demográficas ―com a proporção menor de idosos que a Europa― a médica acredita que a doença rejuvenescerá no país por essa mesma característica populacional.

A pneumologista pondera que a desigualdade brasileira não dá a todos a mesma chance de prevenir a doença. Chama atenção especialmente para a população das favelas, onde as pessoas vivem aglomeradas, sem acesso a saneamento básico e sem as mesmas condições de frear o contágio. Dalcomo defende um distanciamento social mais severo nas próximas semanas como medida fundamental para que o Sistema Único de Saúde (SUS), que atende a maior parte da população, consiga ampliar seus leitos de UTI. “O problema é se vai dar tempo de tudo isso estar operando nos próximos 30 dias, período em que a epidemia só vai crescer”, diz. Até este domingo, 12 de abril, o Brasil somava 22.169 pessoas infectadas ―o dobro do registrado há uma semana―, e 1.223 mortes por Covid-19.

Pergunta. O que podemos observar sobre as características que a Covid-19 apresenta no Brasil?

Resposta. Podemos observar, sem surpresa, uma subida importante da curva epidêmica e uma maior dispersão da doença nas grandes concentrações urbanas brasileiras, o que não é diferente daquilo que foi esperado epidemiologicamente. E as medidas que estão sendo tomadas pelas autoridades sanitárias brasileiras, não de modo homogêneo como nós gostaríamos, mas de modo heterogêneo, em relação ao isolamento social. As medidas estão corretas. Como membro do grupo de especialistas que apoia o Ministério da Saúde, eu digo isso. As medidas de contenção da epidemia através do isolamento social, proposto de maneira bastante severa nestas semanas e ainda durante todo o mês de abril, são a nosso juízo a arma maior que o Brasil tem no sentido de conter a epidemia. A segunda arma importante que o Brasil tem é uma coisa preciosa chamada SUS, que é quem vai dar a resposta para a grande maioria da demanda que vai ocorrer seguramente.

P. Quais os principais problemas que enfrentamos hoje, especialmente nas favelas?

R. Hoje nós temos alguns problemas, que são as populações mais desassistidas, as comunidades mais pobres, que vão sofrer o baque sendo parte de 40% de brasileiros que são da economia informal, que seguramente vão sofrer porque são pessoas que vivem da mão pra boca, que trabalham naquele dia para levar o alimento e os subsídios elementares para a sua família. Então isso é um problema que exige do Governo e da iniciativa privada uma colaboração, no sentido de assistir essas populações do Brasil. O grande desafio hoje é como diminuir o impacto não apenas da transmissão da doença, mas também do impacto social e econômico que ela pode gerar nas populações mais desassistidas. O segundo problema são as condições de trabalho dos profissionais de saúde, que atendem a essa grande população. Hoje estamos tendo problemas logísticos. As iniciativas estão sendo tomadas, mas precisamos correr contra o tempo para a chegada de EPIs [equipamentos de proteção individual] para as pessoas trabalharem. Também precisamos de mudanças de comportamento, como o uso de máscaras pelas pessoas para se locomover. São dinâmicas que a evolução da epidemia exigem.

P. O Brasil tem características próprias em relação ao comportamento da doença? A maioria dos casos mais graves ocorre em pessoas com mais de 70 anos, mas há muitos jovens sendo internados com quadro mais grave da doença. Por quê?

R. No Brasil, a Covid-19 vai rejuvenescer. A distribuição da população brasileira é diferente da europeia. Não temos um percentual de idosos que tem a Itália ou a Espanha. A nossa distribuição de população, embora tenhamos já cerca de 10% a 11% da população acima de 60 anos, tem uma grande concentração de jovens. Então é natural que a doença se distribua majoritariamente entre jovens. Então é ilusão de que jovens estariam mais protegidos. A distribuição demográfica no Brasil dará à doença características brasileiras. Além disso, o vírus já sofreu mutações e já se adaptou ao Brasil. Cientistas estudaram 20 genomas diferentes, de cinco Estados brasileiros, e mostraram que o vírus já sofreu mutações. Isso não muda nada em termos de patogenicidade do vírus, porém dá a ele características de adaptação.

P. O que se dizia era que os jovens contrairiam o coronavírus, mas o risco de evoluir para casos mais graves era maior nos idosos.

R. Na maior parte das vezes, os jovens têm muito menos possibilidade de complicar. Nesse momento, estou tratando várias pessoas com a Covid-19, mais ou menos com a mesma idade, e está todo mundo em casa. Ninguém está internado. Eles estão com pneumonia, pela tomografia. Eles têm teste positivo e estão doentes, mas não estão graves e ficarão curados. Então se espera uma evolução de 14 a 21 dias para que a gente libere o doente e possa considerá-lo curado. Mas uma mensagem que eu tenho tentado passar é que não há invencíveis para o Sar-Cov-2. Todos somos vulneráveis. No Brasil, seguramente a doença vai atingir populações mais jovens. Se você for medir a média de idade dos pacientes internados em São Paulo ou no Rio de Janeiro, ela não é de pacientes de 80 anos. Ela é bem mais jovem.

P. A senhora falou dos riscos para as comunidades e das mutações que o vírus já sofreu no país. Quais os alertas que as particularidades do Brasil levantam?

R. As mutações havidas no vírus não representam mudanças na patogeneicidade dele. Até onde nós sabemos, ele não é melhor nem pior. Ele apenas sofre mutação porque é altamente mutável. Certamente sabemos que o vírus chinês é diferente do que foi para a Itália. Lá, ele também sofreu mutação. O vírus que chegou ao Brasil não foi da China, foi da Europa. O caso número um veio da Itália e, naquele momento, ele se assemelhava ao genoma do vírus alemão. Era europeu, claramente. O fato de ter sofrido mutação no Brasil não quer dizer que seja mais ou menos patogênico. Ou seja, a capacidade dele causar doença e se distribuir da mesma maneira que já sabemos ―80% de forma leve e 20% de forma mais grave, dos quais 50% vão para o CTI [centro de terapia intensiva]― parece estar mantido no Brasil até o momento. A proporcionalidade já conhecida dos casos parece estar mantida. Se vai ter maior proporção de casos graves que na Europa, acho difícil. Aqui vai ter mortalidade, não há dúvida. Não temos nenhuma ilusão.

P. A senhora citou que o SUS é uma grande ferramenta no enfrentamento brasileiro, mas ele também enfrenta problemas estruturais. Como esse sistema tripartite e capilar vira arma?

R. O SUS é um sistema hierárquico e capilar, para onde corre 80% da população brasileira. É essa a estrutura que vai ter que dar uma resposta à pandemia. Para isso, estão sendo construídos para casos graves os hospitais de campanha, com leitos sendo oferecidos pelo Brasil, inclusive pela Fundação Oswaldo Cruz, onde eu trabalho, que está abrindo um hospital de campanha de 200 leitos para que nós possamos desenvolver os ensaios clínicos referentes aos tratamentos, para verificar se tem algum tratamento que se mostre válido. Até o momento, não há nenhum tratamento válido para isso. E o SUS precisa se reorganizar nesse momento no sentido de fazer triagem, selecionar pacientes suspeitos e, inclusive, colher testes. Estamos ampliando isso, mas no momento um dos nossos gargalos é não ter exames para testar a grande massa de população. É isso que não nos permite dizer, por exemplo, se a nossa mortalidade é real, porque ela está baseada num número muito pequeno de pessoas efetivamente testadas.

Com mais testes, teremos um denominador mais confiável. Mas o SUS tem uma rede básica de saúde composta pelas clínicas de família e pelas unidades básicas de saúde localizadas em todas as cidades e nas periferias das grandes cidades. Caberá a eles fazer a seleção dos pacientes e a orientação das famílias com as normas todas que já conhecemos [de isolamento e higiene]. E separar os fatores de risco porque, na revisão do Ministério da Saúde, da qual eu fiz parte, nós adaptamos o fluxograma usado na rede básica para a síndrome respiratória aguda. Baseado na experiência chinesa, nós associamos dois novos fatores como fatores de alerta [ao protocolo que já existia para outras síndromes gripais]: hipertensão arterial grave e cardiopatia grave. Esses dois fatores, até o momento, são os que levaram a aumentar a mortalidade na experiência chinesa.

P. O número de internações por síndrome aguda respiratória grave (uma complicação da Covid-19 e também de outros vírus respiratórios como a Influenza) já quadruplicou em relação ao mesmo período do ano passado. Quais os desafios do Brasil, num momento em que os sistemas de saúde sentem uma forte pressão da demanda?

R. As medidas tomadas são indubitavelmente corretas. O problema é o timingse vamos conseguir dar uma resposta no tempo correto para a demanda. Isso vai depender muito do isolamento social. Se nós conseguirmos um isolamento muito radical nas próximas duas semanas, que é quando o sistema está se adaptando. Respiradores têm sido instalados e leitos têm sido abertos. O que não pode haver é uma superposição de demanda de síndrome respiratória aguda grave. Estamos no outono e existe uma sazonalidade viral de todo ano, que é conhecida. Muitos vírus começam a ocorrer neste período, e a decisão de adiantar a campanha de vacinação foi correta. Já se vacinou muita gente e, curiosamente, aconteceu uma busca pela vacina muito maior que em anos anteriores. Nós fomos claros em dizer que elas nos auxiliaria. Agora, medidas como ampliação de testes, aprimoramento da hierarquia do SUS com disponibilização de leitos hospitalares e respiradores para pacientes graves seguramente é a medida de resposta a este desafio. O problema é se vai dar tempo de tudo isso estar operando nos próximos 30 dias, período em que a epidemia só vai crescer.

P. O que entra propriamente nesta conta contra o tempo? Estamos agindo corretamente?

R. Todo mundo está correndo, inclusive a rede privada. No Brasil, havia uma inversão. Até agora, quase 60% dos leitos de CTI estavam para atender a rede privada, então nós precisamos inverter essa ordem. Ou seja, tem que aumentar o número de leitos para a rede pública. A rede privada já está exaurida, como nós sabemos. Adaptar o SUS e ter mais testes é o nosso grande desafio agora.

Matéria do Portal El Pais Brasil

Por: BEATRIZ JUCÁ

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